NORMAS & ESPECIFICAÇÕES: Um Remédio Amargo!

As normas (standards) fazem parte da criação da humanidade e são instrumentos de vital importância para o crescimento e convivência da sociedade.

A partir de referências em lecionar esta disciplina na universidade, atuação na área de especificações e membro de um dos comitês da ABNT (CB-28) , debaterei as normas técnicas de materiais, expondo suas peculiaridades no setor automotivo em diferentes pontos de vista da montadora: engenharia, manufatura e comercial, e no ponto de vista geral da usina produtora de matéria prima.

O tema é de importância global e a OMC (Organização Mundial do Comércio) recomenda que seus membros participem ativamente do processo de normalização internacional e uma resolução do CONMETRO (Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial)  em 1992 reconheceu a ABNT com fórum nacional de normalização – ÚNICO – e representante nacional nos organismos regionais e internacionais de normalização e esta associação tem como meta os interesses locais para uma normalização dos critérios praticados em nosso País, que são mandatórias para questões legais.

Para este debate, é necessário munir-se inicialmente das diferenças conceituais entre normas internacionais, regionais, locais e privativas (empresas) e neste contexto, entende-se como o centro principal desta discussão, ou seja, quanto mais exclusiva é a norma, mais exigente e restrita serão suas especificações.

Tornando a situação mais clara, para cada item de uma norma, existe uma faixa de valores especificados, partindo do valor mínimo até o máximo e é dessa forma para qualquer propriedade e quesitos. Considera-se a norma mais restrita, quando estas faixas são estreitas ou mais apertadas.

Nesta situação, ainda têm casos de especificações mais abrangentes, onde quantifica-se apenas o valor máximo ou mínimo para um determinado quesito e outros casos ainda mais “peculiares”, onde certos quesitos das normas são apenas informativos e não mandatórios, isto é, as informações estão descritas apenas para auxiliar o engenheiro, mas o controle do produto/material é feito por outros itens especificados na própria norma em questão.

O desenvolvimento do produto é totalmente dependente das normas técnicas e projeta cada componente e/ou sistemas seguindo fielmente as especificações dos itens das normas; as simulações virtuais baseiam-se em dados de propriedades dos materiais; mas, se a cada item da norma tem uma faixa de valores, mínima e máxima pergunta-se: qual é o dado que deve ser usado no modelo de simulação: mínimo, máximo ou nominal? Talvez esta questão seja a mais sensível para execução de um projeto e não deve ter uma resposta única, porque baseia-se em uma série de fatores; focarei em alguns deles, mas sem dúvidas, existem muitos outros.

A faixa de valores dentro de um item da norma existe para atender a variação do processo produtivo do material e sabe-se que é legalmente aceitável fornecer um material ou produto no mínimo ou no máximo de uma determinada especificação. A engenharia automotiva busca incessantemente a redução de massa, eficiência energética e a exatidão do desempenho do produto em campo e ter valores nominais é o interesse principal do projeto.

Certamente, este contexto é conflitante com outros interesses, como os comerciais e de usinas fornecedoras. Diante deste impasse, as montadoras têm desenvolvido suas próprias especificações, mais completas e precisas e com faixas de especificações mais restritas e amplas no sentido de detalhamento do comportamento do produto; certamente foi uma manobra inteligente para trazer seus interesses no produto através de suas próprias normas e também melhorar o grau de confiabilidade do projeto ao considerar um pequena faixa de variação de dados especificados e neste caso, a simulação virtual pode usar a pior condição sem grandes preocupações na representatividade da condição real do produto.

A questão se complica, quando se sabe que além das próprias normas técnicas contidas no desenho do produto, a engenharia tem criado bancos de dados com informações adicionais para auxílio no desenvolvimento e validação.

Uma pergunta que surge aqui é: por que existe banco de dados em adicional às normas técnicas, se ambos fazem parte do produto? Tentarei sucintamente diferenciar ambos, ou seja, normas contidas no desenho do produto são critérios legais de produto e devem ser seguidas fielmente até o final da vida do mesmo, garantindo a qualidade de projeto; por outro lado, informações de banco de dados de materiais são usados apenas para desenvolvimento virtual e validação do produto e também para credenciar um material para uma determinada fonte de fornecimento.

Diante do contexto anterior, está claro que não há interesses da engenharia em usar uma norma abrangente ou “aberta” e sim buscar suas próprias normas e critérios para aumentar a confiabilidade do projeto durante a virtualização e uma maior representatividade de desempenho do produto em uso no campo; porém esta visão nem sempre é compartilhada por outras áreas, que buscam equacionar seus impactos no negócio.

Partindo para a visão da área comercial da montadora, fica claro que o custo do produto/material está totalmente atrelado com o grau de dificuldade para produzi-los, ou seja, ter faixas de especificações amplas em normas generosas, com uma vasta abertura nos controles de itens e situações abrangentes para uma ampla diversidade de produtos e materiais são condições ideias para negociação e prováveis “saves” com melhores estratégias comerciais.

O comprador não tem a obrigação de responder tecnicamente pelo produto, apenas seguir as orientações técnicas e buscar suas estratégias locais ou globais para atender na plenitude um menor custo e abastecimento das plantas.

O aumento da demanda de produto/material seguida por um compartilhamento amplo em diferentes empresas do segmento traz a melhor relação custo versus benefício para o comprador e deve ser explorado a cada caso, mas a decisão final fica por conta da engenharia; que inevitavelmente, sempre estará entre a “cruz e a espada”, ou seja, decidir se pode aumentar o faturamento de sua empresa e arriscar o desempenho do produto ou reduzir as opções de fornecimento e apostar na força da “marca”. O objetivo da visão comercial converge ao interesse para buscas de normas internacionais e regionais.

A opinião da manufatura é divergente, depende do seu tipo de negócio, isto é, ser a favor ou não do uso de normas restritivas está relacionado diretamente na produção internalizada do produto, como exemplos: casos de processos de fundição e soldagem, onde o processamento da manufatura gera a especificação final do componente construído, o qual deve ser confrontado com valores de uma norma.

Neste caso, entende-se que, a maior liberdade de variação de quesitos, propriedades e composições químicas das normas de materiais deixam menos vulneráveis os responsáveis pelo processo e evitam altos níveis de refugos e constrangimento internos nos “metrics” da empresa; nestas situações, a manufatura é a principal voz contrária a opinião da engenharia dentro da empresa para o uso de normas restritivas.

Para outros casos, existem um interesse oposto, ou seja, a importância de utilizar especificações mais restritas, com os exemplos da estampagem de metais, trefilação e na injeção de polímeros; nestes casos, o sucesso do processo de manufatura da empresa e um baixo índice de refugo são os fatores principais do departamento e, portanto, a engenharia terá um parceiro forte para contrapor ao departamento comercial durante a discussão da compra da matéria prima.

O debate anterior é vasto e polarizado para os interesses departamentais, mas o consenso entre as áreas deve ser perseguido e aplicado para o produto e esta é a missão constante do dia-a-dia da montadora; trazendo os departamentos para uma mesma mesa, dividindo os resultados dessa decisão, sejam elas boas ou ruins para cada parte e assim ter um consenso de equipe.

Continuando a discussão para fora da montadora, foca-se na usina de matéria prima que tem um papel fundamental nessa cadeia de produto e também, nas empresas menores e consumidoras de materiais, as quais são amplamente pulverizadas no país. Estas pequenas e médias empresas não têm o poder de negociação das montadoras, isto é, precisam utilizar das normas mais comuns dos mercados, convergindo para as locais (NBR) e é desta forma que o mercado se movimenta.

As usinas conhecem a demanda das montadoras, da linha branca, construção civil e outras áreas e passam a fornecer seus produtos diante de um cenário muito bem articulado comercialmente. Atender um produto especificado por uma norma privativa significa garantir os apertados quesitos dentro das faixas especificadas e para isto, cobra-se um “plus” no custo da matéria prima, ou seja, o material comum descrito por uma norma privativa tem vantagens econômicas para a usina.

O aumento da demanda nacional por um certo tipo de material poderia ser uma vantagem para todas a montadoras, mas a dificuldade de informação por parte de todas montadoras é uma barreira nessa tratativa; por outro lado, a própria usina não compartilha essas informações, tornando o cenário muito desfavorável, às vezes, equivocadamente o engenheiro de materiais opta por um material muito incomum nas prateleiras e seu custo será bem além da normalidade do mercado, raramente ele será avisado desta situação.

Este capítulo “usinas fornecedoras” é amplo e fechado, e para não inferir em respostas das usinas, lanço as perguntas e situações para que cada um possa interpretar seu ponto de vista, como seguem:

– A usina produz a mesma matéria prima que pode seguir uma norma privativa ou uma norma local, mas, quais as diferenças de processos, existem mesmo?

– O processo de manufatura ou controle de qualidade da usina são diferentes para atender o mesmo material, especificados por uma norma privativa e outra local?

– As montadoras compram matéria prima com base em normas privativas, porém os pequenos e médios sistemistas que atendem a própria montadora só compram pelas normas locais por não ter demanda. Parece existir uma inconsistência nesta situação, já que os materiais são os mesmos descritos no desenho do produto, trata-se apenas de nomenclaturas;

– As usinas e centros de distribuição podem reclassificar os materiais e definir a norma que melhor lhes interessam, baseados na demanda de mercado; mesmo esta prática ser questionável, difícil constatar qualquer irregularidade neste processo.

– As usinas raramente vão refugar uma corrida de matéria-prima por questões de variação de faixas especificadas em comparação a diferenças entre duas normas restrita ou abrangente, ou seja, normalmente a classificação do material é feito após o conhecimento da qualidade do lote produzido. Por outro lado, o mercado brasileiro absorve qualquer lote disponível, “nada se perde, nada se cria”. O resultado financeiro sempre deve ser positivo para a usina;

– A vantagem de usar uma norma privativa é comprovadamente real para a virtualização no desenvolvimento do projeto, mas pergunta-se se será também na prática de fabricação do produto?Coeficiente de segurança, variação de lotes, variáveis de manufatura e severidade de aplicação do produto são pontos que se misturam no equacionamento da real necessidade em ter valores restritos em um produto;

– Os comitês da ABNT são constituídos fortemente por representantes das usinas, mas poucos de montadoras; nos parece existir um forte interesse neste contexto de normas versus produtos.

Finalizando este tema, os avanços tecnológicos requerem mais normas privativas e nesta mesma razão, aumentam as preocupações do impacto nos custos sobre o produto final, por isto, o bom senso e o conhecimento técnico devem decidir na otimização das melhores práticas e competitividade das empresas. A qualidade técnica do engenheiro vai ser tornar mais importante na solução deste contexto.

[1] https://acobrasil.org.br/site/cb-28/

[2] https://www.gov.br/inmetro/

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