Têmpera ao ar de insertos de assentos de válvulas obtidos com o aço ferramenta AISI D2

O objetivo do presente trabalho foi o de tratar termicamente e caracterizar os insertos de assentos de válvulas sinterizados obtidos utilizando-se uma mistura de pós. Essa mistura de pós foi constituída pelo aço ferramenta AISI D2, ferro, sulfato de manganês, carboneto de nióbio, grafite, estearato de zinco e cobre. O ciclo térmico da têmpera ao ar foi determinado por meio da utilização de termopares do tipo k acoplados a um sistema de aquisição de dados.

 

A válvula e o inserto de assento de válvula são uns dos componentes responsáveis pela vedação da câmara de combustão interna dos motores automotivos (ver Fig. 1). Estes componentes operam em condições adversas de alta solicitação mecânica[1]. As etapas mais críticas ocorrem durante a admissão e exaustão dos gases. O pior caso está atrelado a etapa de exaustão dos gases, onde a temperatura no assento da válvula pode chegar a 700°C e no assento do inserto até 350°C[2].

O uso de aços rápidos e aços ferramentas é uma opção consolidada para a obtenção de peças sinterizadas devido à sua boa resistência mecânica, à corrosão, alta condutividade térmica e boa usinabilidade[3]. Do ponto de vista comercial e industrial, não basta somente utilizar um material excepcional. A fabricação, os requisitos técnicos e a legislação ambiental impõem uma série de critérios que muitas vezes tornam necessário escolher outro material não ideal para uma determinada aplicação. Este foi o caso que motivou a modificação da liga original dos insertos, substituindo-se o cobalto devido ao seu alto custo e o chumbo por razões ecológicas e de segurança[4]. Considerando este cenário, o uso de componentes obtidos através da rota de metalurgia do pó (M/P) melhorou o desempenho dos motores automotivos, além de reduzir o seu custo de fabricação[5-7]. Portanto, o uso da técnica de M/P está crescendo constantemente e permite a obtenção de peças metálicas a baixo custo, alta flexibilidade durante as etapas de fabricação e um controle microestrutural rígido[6, 7].

Os insertos estudados no presente trabalho foram previamente desenvolvidos por Santos et al.[8] e este trabalho foi baseado nos componentes apenas como sinterizados. Um dos principais objetivos do presente trabalho foi o de tratar termicamente e caracterizar tais insertos obtidos com a mistura de pós do aço ferramenta AISI D2, ferro e outros aditivos. O tratamento térmico consistiu em temperar ao ar e duplamente revenir todos os componentes. Como qualquer temperatura até a temperatura crítica inferior pode ser usada para revenir os materiais[9], todos os insertos temperados ao ar foram duplamente revenidos em sete temperaturas equidistantemente diferentes, variando de 100°C a 700°C.

 

Materiais e métodos

O inserto investigado ao longo deste trabalho foi obtido através da técnica de M/P. As misturas de pós constituiram-se de aço ferramenta tipo AISI D2, pó de ferro e outros aditivos como sulfeto de manganês, carboneto de nióbio, grafite e estearato de zinco para reduzir o atrito entre as partículas e a matriz. A determinação da distribuição do tamanho de partículas do aço ferramenta AISI D2 foi feita através da dispersão do pó em água e subsequente análise por difração a laser baseado na teoria de Fraunhofer e Mie[10]. A composição química nominal da mistura de pós estudada neste trabalho é mostrada na Tabela 1.

Todos os pós foram misturados em um misturador intensivo durante 300 s a 1.715 rpm, exceto o pó de cobre, pois este foi adicionado aos insertos por infiltração metálica, i.e., dois compactados a verdes com dimensões de 32,5 x 25,5 x 5,9 mm3 foram obtidos a partir da prensagem das misturas de pós presente na Tabela 1 (Fig. 2. a)) e de pó de cobre (Fig. 2. b)), e antes do início do processo de sinterização, o compactado de cobre foi sobreposto ao inserto. Compactados a verdes foram obtidos a partir da compactação da mistura de pós em uma prensa hidráulica de dupla ação instrumentada e a pressão de 700 MPa.

Os compactados a verdes foram pré-aquecidos até 600°C (com uma taxa de aquecimento de 16°C/min) durante 35 min. para eliminar o estearato de zinco. Dando continuidade ao processo, os insertos foram austenitizados à 1.150°C (aquecidos à 14°C/min) por 40 min. Por fim, os insertos foram resfriados, ainda dentro do forno, até a temperatura ambiente com a taxa de resfriamento de 20°C/min. A sinterização dos compactados a verdes foi realizada em um forno comercial de esteira contínua sob uma atmosfera redutora baseada em hidrogênio (90% H2 + 10% N2).

Para evitar a descarbonetação, antes do tratamento térmico ter início, os insertos foram embrulhados em papel sulfite e colocados dentro de uma caixa de aço ao carbono contendo uma mistura de 50% de C (grafite) + 50% de Al2O3 (óxido de alumínio). Esta caixa foi então colocada dentro de um forno mufla de laboratório. O tratamento térmico dos insertos sinterizados consistiu em austenitizá-los a 1.150°C (aquecido a uma taxa de 29°C/min) por 20 min. Os componentes austenitizados foram então temperados ao ar até a temperatura ambiente. Termopares tipo k foram afixados a amostra e a um sistema de aquisição de dados, permitindo assim a obtenção da taxa de resfriamento das amostras. Os insertos temperados ao ar foram submetidos a um tratamento térmico subcrítico, denominado revenimento, de uma maneira similar à utilizada para a têmpera ao ar. Todos os insertos temperados ao ar foram duplamente revenidos até a temperatura ambiente, durante uma hora cada em sete temperaturas equidistantes, variando de 100°C a 700°C.

As propriedades físicas e mecânicas dos componentes foram determinadas através de três ensaios. Primeiro, a dureza aparente dos insertos foi determinada de acordo com a norma ASTM E 10-01[11]. Este teste padronizado é utilizado para a determinação da dureza Brinell em materiais metálicos. Segundo, a densidade aparente dos componentes foi determinada imergindo-os em água, usando o método de Arquimedes, e medindo sua diferença de massa de acordo com o ensaio ASTM C 373-88[12]. Terceiro, o ensaio de resistência à ruptura radial foi realizado de acordo com o teste padrão MPIF 35[13]. Este ensaio consiste em comprimir radialmente o inserto até que a primeira queda de carga ocorra, pois isto ocorre devido a ruptura parcial do material.

A composição química dos insertos foi determinada através de duas técnicas, sendo elas a análise de gás e a espectrometria por energia dispersiva de fluorescência de raios X. A técnica de análise de gás foi utilizada para a quantificação dos elementos leves, tais como carbono e enxofre. Este equipamento utiliza um forno de indução e determina a quantidade de cada elemento por absorção de infravermelho[14-17].

As amostras foram preparadas para a caracterização microestrutural através de procedimentos convencionais de metalografia, incluindo embutimento, lixamento e polimento. As amostras foram atacadas com Nital 3%, constituído de 97% (vol.) de álcool etílico + 3% (vol.) de ácido nítrico (HNO3) concentrado, durante 5s[18] sendo posteriormente observadas em microscópio óptico (MO).

 

Resultados e discussão

A distribuição do tamanho de partículas do pó de aço ferramenta AISI D2 é mostrada na Tabela 2. E devido ao método de obtenção do pó de aço, por meio de atomização a gás[19], as partículas do aço ferramenta AISI D2 tinham formato esférico. O formato da partícula tem grande influência nas propriedades finais dos componentes. As partículas esféricas em específico, proporcionam o melhor fator de empacotamento, fluidez e como consequência, maiores velocidades de produção.

A variação da dureza Brinell (HB 2,5/187,5) para os insertos levando em consideração os sinterizados e os componentes tratados termicamente por uma hora em uma temperatura específica e depois resfriados ao ar, é mostrada na Tabela 3. É possível observar uma variação substancial da dureza dos componentes. De acordo com os requisitos exigidos para a aplicação comercial dos insertos, a dureza deve estar entre 370 HB e 410 HB. A mesma tabela mostra que o tratamento térmico que mais se aproximou dos valores de dureza estabelecidos, é a Mistura (AISI D2) duplamente revenida a 500°C. Então, é importante mencionar que todos os resultados e discussão seguintes no presente trabalho estão atrelados a este tratamento térmico em específico.

Apesar da dureza aparente ser uma propriedade mecânica muito importante, outras duas propriedades físicas são tão importantes quanto. Essas propriedades são a densidade aparente e a resistência à ruptura radial dos insertos. Um resumo dos resultados obtidos para tais propriedades nos componentes tratados termicamente pode ser observado na Tabela 4.

Em comparação ao trabalho desenvolvido anteriormente por Santos et al.[8,20,21], apenas com componentes sinterizados, a densidade aparente pode ser considerada a mesma, 7,3 g.cm-3. O valor de dureza aparente medido por Santos[8] foi inferior, 325 ± 22 HB, aos obtido no presente trabalho, 355 ± 2 HB. Além disso, o valor de resistência à ruptura radial medido por Santos[8] foi maior, 945 ± 81 MPa, do que o mostrado neste trabalho, 792 ± 57 MPa. Embora o valor de resistência à ruptura radial obtido no presente trabalho seja menor quando comparado com aquele alcançado por Santos[8], essa propriedade só é necessária durante a montagem do inserto no cabeçote do motor. Portanto, não existe um valor de referência mínimo para a resistência à ruptura radial, o componente apenas precisa suportar os esforços durante a etapa de montagem.

A medida da composição química do inserto é mostrada na Tabela 5. Os teores de carbono e enxofre foram determinados através do método de análise de gás, todos os outros elementos foram determinados usando a espectrometria por energia dispersiva de fluorescência de raios X.

Dos resultados mostrados na Tabela 5, a respeito da concentração de cobre, pode-se notar uma variação na sua quantidade em relação ao seu valor nominal (ver Tabela 1). Este valor deveria ser de 10%, mas o valor medido foi de 11,79%. Tal variação na quantidade de cobre pode ser justificada por não ter-se pareado com precisão a massa do anel de cobre (Fig. 2. b)), que devia ser de dez por cento da massa do inserto, com a massa de cada inserto compactado.

A taxa de resfriamento obtida durante a têmpera ao ar dos insertos (ver Fig. 3) foi medida com o auxílio de termopares tipo k afixado à amostra e a um sistema de aquisição de dados, sendo que a taxa de resfriamento medida foi de 0,6°C/s.

Na Mistura foram encontradas outras microestruturas diferentes a esperada para o aço ferramenta AISI D2, isto ocorreu devido à adição de outros elementos, i.e., pós de ferro, sulfato de manganês, carboneto de nióbio, grafite e cobre. A Fig. 4 mostra a micrografia óptica da Mistura. É possível observar algumas ilhas de ferrita (identificada por Fe) quase não transformadas, fina distribuição de cobre (Cu), presença de grandes quantidades de martensita (M), fase esta principalmente atrelada a transformação das partículas do aço ferramenta que foram austenitizadas durante a têmpera ao ar e, baixa quantidade de poros (regiões escuras) devido à alta densidade aparente do componente. A rápida transformação da austenita em outras fases, devido a alta taxa de difusão da Mistura, resultou em grandes ilhas de perlita (P) e bainita (B) no contorno de tal partícula. Também observou-se a presença de baixa quantidade de martensita contendo altos teores de carbono (tipo M ‘), assim como a presença de sulfeto de manganês (MnS) e carboneto de nióbio (NbC). Todas as fases presentes contribuíram para os bons resultados alcançados durante a caracterização física e mecânica dos insertos obtidos com tal Mistura.

 

Conclusão

Os tratamentos térmicos provaram ser eficientes no que tange as variações de propriedades físicas e mecânicas pretendidas nos componentes.

Todas as partículas do aço ferramenta AISI D2 presentes na microestrutura dos insertos foram completamente transformadas em martensita, mesmo a têmpera ao ar impondo uma taxa de resfriamento branda ao material.

Apesar da alta difusão do carbono nas partículas de ferro, resultando na formação de fases perlíticas que prejudicam algumas propriedades desejadas ao componente, o aço ferramenta AISI D2 teve a maior influência nas propriedades físicas e mecânicas dos insertos de assentos de válvulas.

Os insertos obtidos com o aço ferramenta AISI D2, sendo este um aço ferramenta para trabalho a frio, atenderam as exigências mínimas de propriedades mecânicas impostas pelas montadoras, podendo ser testados em motores a combustão devido ao seu menor custo em relação a outros aços, por exemplo, os aços rápidos tipo AISI M3:2 e AISI M2.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem a CAPES e ao CNPq pelo apoio financeiro. Além disso, a General Motors SA, Höganäs e Grupo Combustol & Metalpó pelo fornecimento de materiais e equipamentos.

 

O artigo apresentado foi terceiro colocado do Prêmio Revista Industrial Heating Brasil, oferecido na VIII Conferência Brasileira sobre Temas de Tratamento Térmico – TTT 2017. E teve coautoria de Igor Passos dos Santos, Camila Pucci Couto, Cristiano Stefano Mucsi, Jesualdo Luiz Rossi – Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), São Paulo (SP) e Marco Antônio Colosio – General Motors (GMSA), São Paulo (SP).

Referências

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