Automóvel: Quo vadis, domine?

Se o lendário Mercury 1948 de meu avô, o primeiro carro da família, milagrosamente saísse do Oblivion e voltasse a circular pelas ruas, não encontraria um ambiente tão diferente assim dos tempos em que saiu da linha de montagem. Afinal, era um carro com motor a explosão, movido a gasolina, dotado de pistões, cárter e caixa de transmissão – ou seja, em sua essência, muito pouco diferente dos carros que rodam atualmente. Isso mostra como é duradoura a tecnologia automotiva desenvolvida no final do século XIX. Obviamente houveram inúmeros aperfeiçoamentos, muitos mecânicos, mas principalmente eletrônicos, que contribuíram para seu aperfeiçoamento e longevidade.

Desde o seu advento a indústria automotiva achava que sua principal ameaça seria o esgotamento das reservas de petróleo. Mas a evolução contínua da tecnologia de extração dessa matéria prima foi espantando esse fantasma ao longo do tempo. Cada pico na cotação no petróleo motivou a exploração de reservas mais distantes e também a evolução da tecnologia de sua extração. O último deles viabilizou a extração de gás natural por fratura hidráulica das rochas de xisto, reconduzindo os EUA. ao clube das potências petrolíferas de primeira grandeza. Portanto, assim como a Idade da Pedra não acabou por falta de pedra, tudo indica que a Era do Petróleo não vai acabar por falta de óleo.

De fato: o fantasma da escassez foi substituído pelo espectro das mudanças climáticas disparadas pela elevação do teor de gás carbônico na atmosfera, situação criada principalmente pelos gases resultantes da queima de combustíveis fósseis. A reação tecnológica foi imediata, com a retomada do uso de biocombustíveis e o início da busca por processos de conversão do gás carbônico em matéria prima para a fabricação de hidrocarbonetos. A criação de um círculo fechado entre geração e consumo do gás carbônico seria a solução ideal, mas a termodinâmica teima em dificultar a versão sintética desse Santo Graal, já que esse gás é uma das substâncias mais estáveis do ponto de vista químico. A Mãe Natureza quebra esse galho através da fotossíntese, mas sempre há um porém: nem sempre o uso dos biocombustíveis é viável economicamente e sempre resta a questão ética de se usar terras para produzir combustíveis ao invés de alimentos para um mundo faminto.

No momento, a alternativa mais popular para esse problema vem sendo o carro elétrico. Ele não chega a ser novidade: na aurora dos automóveis esse tipo de propulsão rivalizou seriamente com os motores à explosão, até por ser mecanicamente mais simples. Carros elétricos eram os preferidos das senhoras de então, pois, ao contrário do motor à explosão, não havia a necessidade de se dar partida à manivela, algo complicado e que demandava bom esforço físico. Mas o carro elétrico foi derrotado pela baixa capacidade de suas baterias, que não eram capazes de armazenar a mesma quantidade de energia que era proporcionada por um tanque de gasolina de igual volume.

Recentemente têm sido anunciados avanços notáveis, como o modelo 3 da Tesla, que teria autonomia para rodar 500 km com uma carga de bateria. Notícias desse tipo vêm animando vários países – e mesmo fabricantes de automóveis – a propor datas para o término da fabricação de veículos movidos a motores a explosão. Os prazos propostos são ambiciosos, mas a imensa estrutura industrial e comercial baseada nos motores a explosão é um formidável contraponto a essas profecias. Além disso, de onde virá a eletricidade necessária para movimentar milhões de automóveis? Seria inútil usar carros elétricos se sua energia vier de usinas termelétricas – a geração de gás carbônico só mudaria de lugar. E todas as demais formas de geração de energia elétrica possuem ressalvas do ponto de vista ambiental, em maior ou menor nível de gravidade.

De toda forma, o aumento do grau da eletrificação da mobilidade parece inevitável. Essa mudança radical precisa ser considerada seriamente pela siderurgia, pois o mercado automotivo é um dos seus clientes mais importantes – e, no mundo, há usinas que dependem exclusivamente dele. Afinal, trata-se da produção em grandes volumes de aços sofisticados, de alta qualidade e valor agregado – ou seja, garantia de bons lucros numa situação de superprodução que não parece que se resolverá a curto prazo.

No caso da siderurgia de produtos planos, não há muita novidade, exceto a exacerbação da necessidade de redução de peso das carrocerias e componentes estruturais dos carros elétricos, já que a autonomia de suas baterias constitui seu principal ponto fraco. Já para os produtores de aços de engenharia e seu principal cliente, o setor metalmecânico, a situação não é promissora: a mecânica de carros elétricos é bem mais simples, pois seus motores simplesmente já se encontram incorporados a um eixo, que pode ser o da própria roda do carro. Por sua vez, um motor a explosão é uma traquitana autodestrutiva, cuja energia vem de pulsos causados por detonações de combustível, a qual tem de ser convertida em propulsão através da movimentação de bielas, virabrequins, caixas de transmissão, eixos e diferenciais; além disso, ele precisa do apoio de sistemas de lubrificação, refrigeração e exaustão. De repente, com o carro elétrico, tudo isso passa a ser desnecessário – e o impacto no setor metalomecânico seria profundo, pois a gigantesca demanda por inúmeros componentes mecânicos simplesmente despencaria.

Mas o panorama pode ser ainda mais preocupante, pois mudanças ainda mais radicais na mobilidade estão apontando no horizonte. O carro está deixando de ser um símbolo de status da classe média, particularmente nos países desenvolvidos. Afinal, o custo para se manter um automóvel – entre depreciação, utilização, manutenção e impostos – representa uma fração significativa no orçamento familiar e das empresas. Cada vez mais a independência e liberdade que ele proporciona transformam-se em stress quando se trafega nas grandes cidades ou nas rodovias em fins de semana e feriados. Por que não, então, pensar na mobilidade de forma mais pragmática e racional, como um serviço ao invés de um bem? As novas tecnologias digitais, que criaram caronas de baixo custo com serviço melhorado, constituem um exemplo dessa nova tendência. Outra é o aluguel de carros a longo prazo a preços mais favoráveis do que os decorrentes de sua posse. Isso podem ser indícios do começo de um processo de desintoxicação automotiva que poderá afetar profundamente o setor, ainda mais se os carros com direção autônoma conseguirem se impor no mercado. Assim como já não mais precisamos ter CDs e DVDs em casa, alugaremos um carro autônomo quando precisarmos nos deslocar e deixaremos as vicissitudes do trajeto por conta dele. Isso certamente irá provocar mudanças profundas na quantidade e tipo de carros que serão vendidos no futuro. E Gaia agradeceria bastante pela menor carga ecológica imposta ao planeta.

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